7.3.07

A solução de Kafka

Kafka percebeu como ninguém a grande questão da condição humana: as pessoas só te amam enquanto você não é um asqueroso inseto de dois metros de comprimento. Fácil e simples assim. Quando a metamorfose se completa, o amor cede lugar ao nojo, à repugnância, ao ódio.
Esta não é uma observação leviana. Todos nos tornamos insetos asquerosos com o passar dos anos. Deixamos de lado o cuidadoso cálculo com o qual organizamos nossa vida nos primeiros anos e, a partir de então, levamos nossas vidas quase em modo automático. Deixamos de construir relações para mantê-las apenas por inércia. Deixamos de inovar relacionamentos para deixá-los sucumbir à monotonia. Abrimos mão de reiniciar, ou iniciar, projetos apenas por preguiça, por desânimo. O ser humano nasce homem e morre barata!
O que Kafka deixa nas entrelinhas, ou talvez não tão nas entrelinhas assim, é que o problema pela nossa decadência está em nós mesmos. Ora, essa também não é uma afirmação leviana. Na obra de Kafka, à primeira vista, os responsáveis pelo martírio do personagem principal sempre são agentes externos: a transformação inexplicável de Gregor Samsa em inseto, os agentes da burocracia que levam o pobre K. à batalha judicial, o poderoso castelo que se ergue e domina a vida daqueles sob suas garras etc. À primeira vista, a culpa é colocada sobre esses agentes externos, meio que como um meio de livrar o personagem do inconveniente auto-flagelo, típico de sua raça.
Como eu disse, essa é uma impressão à primeira vista. Aqui está, ao meu ver, o gênio de Kafka e sua grande ironia, seu magnífico deboche. A culpa não é dos agentes externos, a culpa é, na maior parte, do próprio personagem. Culpa porque é um ser fraco, incapaz de reconhecer a própria mediocridade, incapaz de lutar ou de perceber o absurdo de sua própria situação. Encontra-se constantemente encurralado e resolve jogar as regras dos seus adversários, ao invés de virar o tabuleiro e perceber o inusitado de sua posição. Responde às perguntas ao invés de gritar "mas que porra é essa? Não vou aceitar merda de pergunta nenhuma". Em suma, domestica-se para evitar o embate direto contra aqueles que desencadeiam, porém sob conivência da própria vítima, seu martírio.
Kafka percebeu o fantasticamente óbvio. Hoje leio n´O Globo que pessoas isentas do imposto de renda em 1996 pagam hoje, em parte, até a maior alíquota de 27,5%. Trata-se de apropriação que o governo faz dos ganhos de pessoas comuns, não milionários. Pessoas de classe média com ganhos em torno de 2800 reais.
Agimos na solução de Kafka: jogamos o jogo ao invés de perceber o absurdo da situação. Cômico. Trágico. Fosse Kafka o governo, brincaríamos de barata.