23.6.07

Idéias fora do lugar da história.

Uma idéia corrente entre defensores do liberalismo econômico, percebo, é aquela que prega ter sido o capitalismo responsável por significativas melhorias na sociedade. Responsável pelos notáveis avanços tecnológicos, pela expansão da lei como referência a todo um conjunto de cidadãos, pelo desenvolvimento da democracia, pela diminuição da pobreza e aumento da expectativa de vida etc. A idéia é clara. Faz até algum sentido: nos últimos 150 anos a humanidade presenciou índices de crescimento jamais vistos em milênios. A extrema desigualdade do mundo, também jamais visto nos mesmos milênios, seria apenas um "desvio" do capitalismo, uma chaga naqueles pontos onde o liberalismo não encontrou espaço para atuar. Em outras palavras, a desigualdade seria um indício de falta de capitalismo. Não de seu excesso.
Não vou discutir as implicações que tal argumentação sugere. Sou muito desconfiado quanto a explicações que começam pelo sistema: "O capitalismo fez isso, o comunismo fez aquilo". Essa forma de construção diz muito pouco para mim. Além, é claro, do absurdo, a meu ver, que é catalogar sistemas como inerentemente bons ou maus.
O que me chama a atenção para essa argumentação (capitalismo responsável pela melhoria da humanidade) é a sensação de paz que ela traz consigo. Responsabilizar o capitalismo pela melhoria me soa como aceitar um imenso constrato entre humanidade e sistema, com a primeira entrando com trabalho e o segundo com direitos. Seria bem simples assim: trabalhadores do mundo, uni-vos e papai vai entregando seus direitos, o avanço científico, o mundo maravilhoso.
Para não me alongar nesse texto, vou me ater aos direitos. Os diversos povos pré-iluminismo, pré-racionalização do direito, viviam num delicado balanço onde cada grupo possuía seus códigos normativos próprios, que muitas vezes sobrepunham-se aos códigos legais de Estado ou da Igreja. Dessa forma, o direito da tradição, consuetudinário, possuía maior aplicação para os membros que dele partilhavam do que as ordenações "estatais".
O iluminismo, junto à consequente alteração na forma de abordagem da Justiça, alteraram esse quadro. Contudo, a progressiva universalização do direito não se deu da noite para o dia, nem foi fruto de um acordo entre as diversas camadas da população, cada vez mais identificadas com "classes sociais". O nascente direito ainda privilegiava certas classes em detrimento de outras, com a diferença de renda entrando no lugar da diferenciação estamental típica do Antigo Regime.
Esse panorama é simplista e tem muitos "erros". Contudo, meu propósito é chamar a atenção para o fato de que a expansão dos direitos não foi fruto do capitalismo, ou melhor, das idéias liberais que o acompanhavam. Entram aí os conflitos, os movimentos sociais. O que foram os cartistas na Inglaterra? Ou que relevância teve o movimento operário norte-americano, fortemente marcado pelo caráter "estrangeiro"? Ou as multidões francesas que tantos problemas causaram aos governantes da República?
A movimentação popular, por meio de conflitos, expandiu os direitos para parcelas maiores da população. Em outras palavras, a dita democracia capitalista, ou liberal, foi fruto de conflitos, lutas, pressões, tensões. Não foi uma expansão inerente ao sistema, mas fruto da ação dos agentes históricos humanos.
Pensar um sistema qualquer, seja capitalista, seja comunista, como inerentemente bom ou ruim, como naturalmente associado à democracia ou à ditadura, é, a meu ver, ignorar o papel que os sujeitos históricos possuem na condução de seus destinos, bem como no da humanidade.
Quando um autor começa seu texto dizendo que "O capitalismo distribuiu a imensas massas de classe média benefícios que antes eram privilégios da aristocracia." (cf. http://www.olavodecarvalho.org/semana/070621jb.html), a anti-historicidade de sua argumentação me leva a escrever esse texto. O absurdo se mostra muito maior à constatação que esse mesmo autor, na página inicial de seu site, coloca, em destaque: "Somente a consciência individual do agente dá testemunho dos atos sem testemunha, e não há ato mais desprovido de testemunha externa do que o ato de conhecer" (cf. http://www.olavodecarvalho.org/). Ou seja, parece-me contradição, caso despercebida, ou vigarice, caso intencional.
Pior! Nas informações sobre o autor, lê-se: "A tônica de sua obra é a defesa da interioridade humana contra a tirania da autoridade coletiva, sobretudo quando escorada numa ideologia 'científica'" (cf. http://www.olavodecarvalho.org/bio.htm). Uma pena que tal defesa não se extenda à defesa da participação humana nos processos de melhoria material da humanidade. Uma pena que a distribuição dos benefícios não seja resultado da luta humana, de indivíduos que se unem em prol de uma causa, mas sejam resultado da ação capitalista, de uns poucos que trouxaram civilização à humanidade.
Esses são absurdos apenas das duas primeiras linhas. Há outros mais. Mas saco tem limite.