9.8.06

Sobre Heloísa Helena, teoria e prática

A entrevista de Heloísa Helena ao Jornal Nacional foi uma preciosidade. Esperta, a senadora esquivou-se vasilinicamente das investidas dos entrevistadores. Poucas perguntas, dentro do já minguado universo de questões abordadas (conseqüência da "matraca" da senadora), referiram-se à proposta de governo e/ou do partido. A maioria referiu-se a questões ideológicas e de posicionamento político. Como se quisessem arrancar uma confissão de uma suposta apologia de Helô à bandidagem (como na pergunta sobre a criminosa depredação do MSLT), ou uma confissão de uma suposta adoração pela ditadura de Fidel , ou por outro regime comunista qualquer (pergunta sobre o modelo de país a ser seguido pelo Brasil), apenas para citar dois exemplos, os entrevistadores não pouparam a senadora de suas investidas. Por fim, sorrateiramente, Heloísa conduziu as perguntas de modo a deixar espaço a algumas de suas propostas, ainda que tenha se ocupado demasiadamente em passar imagem de mãe do povo brasileiro ("mãe do povo", "pai dos pobres"... Quero nem ver quando surgir o cunhado...).
Um trecho da entrevista chamou minha atenção. No momento em que discutem o caráter socialista da formação da senadora, que declara ser socialista por convicção, Heloísa diz que nunca houve um país socialista na Terra. Ela não está errada, evidentemente. Jamais houve um país socialista à Marx, como jamais houve um país liberal à Smith e jamais houve um país Católico à Jesus. Experiências históricas jamais seguem à risca as teorias de seus elaboradores, por três razões que, longe de serem as únicas, são as mais importantes ao meu ver:
1) Teorias são elaboradas em um determinado período, em uma determinada realidade histórica que está em constante mudança. Tentativas de implantação de teorias posteriores à formulação das mesmas tendem a encontrar uma outra realidade histórica, portanto fora dos quadros em que o modelo originalmente foi concebido;
2) Toda teoria é elaborada por humanos, que são limitados por natureza. Teóricos, não importa o quão inteligente sejam, têm sempre uma visão limitada, parcial da natureza e da sociedade. Desse modo, concebem teorias que pretendem ser abrangentes, globais, totalizantes, porém o fazem de uma perspectiva muito restrita, pequena, microscópica. Os fatores negligenciados na teoria (e sempre há fatores negligenciados) agem como um limite prático da teoria.
3) Não dá pra saber se uma teoria é eficaz sem pô-la em funcionamento. E essa posição é sempre inédita, uma vez que toda experiência histórica é única. Desse modo, não é difícil que surjam imprevistos limitantes do alcance da teoria. Não há sociedades mecânicas, que obedecem com respostas esperadas aos estímulos que provocamos. O que existe é um vasto campo de probabilidades que não esgota a realidade, mas se mantém fluído nela.
Dito isso, volto à questão levantada pela senadora do PSoL. Nunca houve e nunca poderá haver uma experiência socialista à risca, que obedeça tintin por tintin à teoria (se não a teoria marxista, que seja outra. Muitos liberais incorrem no comum erro de pensar que socialismo e marxismo são sinônimos). Simplesmente porque, já diz o velho Zé, "em teoria é uma coisa, na prática é outra". Ou, para falar de modo mais chique, a elaboração teórica não pode prescindir da experiência da práxis social, sob risco de tornar-se carapaça vazia, destituída de sentido e sem eficácia prática.
Muitos pretensos liberais adotam postura semelhante à minha, mas deixam-na exclusiva para o socialismo, sem perceber que o liberalismo, tal como o pretendem seus teóricos, jamais será possível à risca. Isso talvez seja ingenuidade ou hipocrisia. É um argumento válido e bastante bom para criticar os socialistas, começar a apontar os milhões de mortos pelos regimes comunistas, coisa e tal. Mas, como exercício intelectual, não chega muito longe. Não é porque as grandes experiências socialistas descabaram para o totalitarismo, culto à personalidade, restrição da liberdade e perseguição política, dentre outras críticas, não é por isso que uma experiência socialista futura (se vier a ocorrer) necessariamente descambará para o mesmo lado. Pode dar certo, pode não dar. Pode ser justa, pode não ser. Do mesmo modo, não é porque o capitalismo gera desigualdades sociais, concentra o banquete na barriga de uns e mata de fome a maioria, promete um mundo livre e de consumismo a todos enquanto só atende a alguns, não é por isso que o capitalismo não pode transformar-se e vir a ser um sistema menos injusto. Não totalmente igualitário, mas que não mate tantos sem que tenham oportunidade de brilhar. Não que dê caviar a todos, mas que não deixe faltar o pão.
A história não permite certezas absolutas nem previsões concretas. O que há são possibilidades, e dentro desse emaranhado de chances é que movemos nossas peças, nossas convicções, nossas ideologias. Sem a percepção dessa teia, desse campo, o que restará é um dogmatismo, é o "refutar por refutar", a birra, a manha, o choro. Sem uma percepção crítica, o que resta é a fé. E com fé a gente não discute. A gente diz "amém".