26.11.06

"Estive aqui ano passado. Era uma cidadezinha tão suja quanto hoje, tão barulhenta que ninguém acreditaria nesse silêncio de agora. Passei por essas mesmas ruas, um tanto mudadas. Por essas mesmas lojas, fachadas idênticas, vidros quebrados e cadeados nos portões. Passei por aquela quadra de basquete, creio inclusive que havia alguém jogando. Pegava a bola e atirava na cesta, errava bastante e não parecia se importar. Quicava a bola como quem se pretende jogador. Um desses jovens negros que desejam subir na vida, como todos nós desejamos secretamente, ou nem tão em segredo. Desejava subir na vida mas lhe impediam o acesso. Concediam a bola de basquete, afinal.
Estive aqui há dez anos. Tudo parecia morno, calmo, morto. Achei que não duraria tanto tempo depois. Tem um poema desses do Borges que fala sobre cidades que desaparecem de tão calmas. Cidades que são esquecidas e somem do mapa como se nunca tivessem estado ali. O Calvino também tem um livro sobre isso, sobre cidades que não precisam existir para nos fazer bem. São invisíveis e isso basta para nos tocar profundamente.
Estive aqui há vinte anos. Era mais moço, mais jovem, mais atraente e mais simpático. Conversei com algumas pessoas temerosas do futuro. Os jovens acreditavam que a educação era uma boa idéia. Estudavam por diploma, comtetitividade num mercado cada vez mais restrito pela formação, pelos contatos e pela cor da pele ou opção sexual. Os carros eram raros e belos. Não esporravam a buzina, pediam passagem educadamente no meio de pedestres sensíveis e trajando chapéus de couro cinza. O ar era intenso, cheirava às vezes a torta de maça quentinha que colocavam na janela pra esfriar. Sorveterias viviam cheias de almas alegres e despreocupadas. Nalgum lugar distante, bombas estouravam.
Estive aqui há trinta anos. Era mato e casas dispersas. As pessoas conversavam, disso eu me lembro. Ouvia latidos famintos de cães bem cuidados. Caçavam patos e comiam galinhas. Tinha uma plantação de batatas que dava uns vergalhões, assim, dourados e desse tamanho. Eu pulava serelepe sem me perguntar por quê. Zuava até cair de cansado ou até apanhar um bocado. Não tinha limites e gostava de ser assim. Era castigado e não me rendia. Bons tempos. Uma vaquinha fazia assim, muumumuuuu."

16.11.06

Eis o imperador acadêmico.

Em abril de 1996, o físico Alan Sokal, professor da New York University, enviou à "Social Text", conceituada revista norte-americana na área dos Estudos Culturais, um artigo intitulado "Transgredindo Fronteiras: Em direção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica". Título pomposo, bonito, fascinante. E era exatamente esse o objetivo do físico, uma vez que tratou-se de uma pegadinha acadêmica. A revista publicou o artigo, que não dizia absolutamente coisa com coisa.
Explico melhor: o objetivo de Sokal era colocar em questão duas coisas: a falta de rigor dos editores da revista e criticar as teorias relativistas pela utilização indevida de conceitos das "ciências naturais" para argumentar seus pontos de vista. Para tanto, escreveu um texto utilizando uma vasta seleção de conceitos e argumentos sem sentido, baseando-se em pura retórica e em palavras bonitas, complicadas e vazias para convencer o leitor. E conseguiu, pelo menos boa parte dos "não-entendidos" no assunto.
Se os objetivos do autor foram plenamente atingidos, ou se ele estava certo em sua crítica, não é o que pretendo tratar agora. O que me espantou nessa história foi a reflexão sobre o peso que um nome científico pode ter na aceitação de determinado conhecimento, principalmente no campo da história, onde as "provas" são bem mais... hum... relativizadas.
Foucault, no primeiro capítulo de "Em defesa da sociedade" e em "A Ordem do Discurso", coloca em xeque as condições de produção, circulação e aceitação do discurso, e coloca, por tabela, as condições de não-aceitação e censura do mesmo. É fato que a instituição acadêmica como um todo (universidades, centros de pesquisa, simpósios, congressos etc.) têm um peso fundamental na divulgação desse discurso que se diz científico e, por tal título, se pretende superior aos demais discursos. Isso não escapou ao filósofo francês. E um nome institucionalizado tem um peso considerável nesse processo de aceitação.
Fosse um físico qualquer, e não Sokal, teria o artigo sido aceito tão simplesmente? Ou teria passado por uma crítica mais rigorosa? Fosse um artigo de história escrito por nomes de peso, seria ele alvo de leituras mais críticas, mais rigorosas?
O que determina a aceitação ou não de um discurso como verdadeiro é sua aceitação ou não pela comunidade científica. Fora daí, é tachado de senso-comum, discurso limitado, pseudo-discurso. Creio que apenas agora a ciência, ao menos as ciências humanas e as biomédicas, começam a levar a sério os chamados "saberes populares", principalmente nas áreas de história oral, memória social e fabricação de remédios. Fora desse engatinhar, as instituições científicas adquiriram um peso considerável, semelhante ou pior do que o peso que as instituições religiosas detinham no passado. A ascensão do capitalismo como sistema hegemônico tem relação direta com isso, talvez, ao estimular uma ciência pragmática, aplicável.
Comentários de um blog não seriam levados a sério numa tese de doutorado, a não ser que o blog fosse de um peso pesado acadêmico. Os nomes têm um poder seríssimo, e apenas nomes consagrados conseguem criticar nomes consagrados nessa disputa de gato-e-rato acadêmica. Talvez chegue o dia em que os discursos em si serão levados mais a sério do que o local onde são produzidos ou a pessoa que fala. Talvez...

Em tempo: não estou me isentando desse modo de ser das coisas. Também estou inserido nessa ditadura no nome próprio. Se quero aceitação acadêmica, preciso jogar de acordo com as regras. Não estou falando de uma revolução completa, mas de pequenos avanços e extensão de espaços. Talvez, de milho em milho, a gente encha o papo algum dia.

13.11.06

Filosofia da Práxis. Humana?

A filosofia da práxis é uma coisa bastante perigosa. Não porque eu esteja debaixo da cama tremendo devido ao "perigo vermelho", nem porque eu esteja armado até a gengiva, apenas esperando aquele bando de desocupados invadir minha propriedade privada de estimação. Não, nada disso. É um perigo para o ser humano em sua auto-afirmação. É um perigo para o espírito mais do que para a carne.
A filosofia da práxis, como a entendo, é um meio de elevar a condição humana a todo seu esplendor. É a ação humana combinada a uma poderosa ferramente de auto-reflexão. É a ação aliada à teoria. É o compromisso com a beleza, com a presença humana e com sua capacidade inestimável.
Aí é que justamente mora o perigo. O caminho que leva à beleza da auto-afirmação é o mesmo que leva à arrogância desenfreada. Ao dogmatismo despercebido. Ao oposto do que prega a filosofia da práxis, enfim.

A ação humana, mesmo envolta na poderosa armadura da reflexão passo-a-passo, contunua sendo ação humana. Limitada, inacabada, parcial. O ser humano é um ser inacabado, já diria Paulo Freire no Pedagogia da Autonomia.

Engraçado como a autonomia que prega a filosofia da práxis passa, necessariamente, como bem aponta Paulo Freire sem o dizer, pela consciência desse inacabamento. Perdida a consciência, perdeu-se a autonomia. O ser humano torna-se, então, refém de suas convicções inabaláveis, que podem ser muito boas para reforçar a ação, mas perigosíssimas para o espírito livre.

A filosofia da práxis necessariamente deve ser uma atitude permanente, jamais estacionada. A cada nova perspectiva corresponde uma mudança, exigindo um novo ponto de vista e uma nova revolução interior, ad infinitum.

O perigo da filosofia da práxis, por incrível que pareça, não é um problema da filosofia em si, mas de nossa limitação humana, de nossa ânsia pela verdade e da arrogância com que debatemos, dentro ou fora da academia, buscando impor nossa verdade aos outros (e aqui cabe lembrar Foucault e a "vontade de verdade" que acompanha o discurso). Seres humanos que podem expandir-se ao máximo, caso deixem de lado essas pequenas cercas que os prendem ao egoísmo de si mesmos.

11.11.06

A volta do amigão da vizinhança

Não sei se já viram, mais saiu um trailer de Homem Aranha 3. Como todo trailer que se preza, o filme parece que vai arrebentar. Como todo filme adaptado que não se preza, parece que sofrerá mais "alterações" na história, nas mãos de roteiristas inescrupulosos que bem mereciam uma teia de impacto na cara.
Já havia me chateado com aquela história da teia sair diretamente do pulso do Peter, e não dos clássicos lançadores. Já havia me chateado, mas deu pra engolir, colocarem a MJ antes da Gwen ou da Betty. Ossos do ofício. Todo filme é uma nova visão, não tem que seguir à risca a história original que lhe serve de inspiração, mas deve mostrar a perspectiva do diretor sobre aquele assunto. Só os fãs mais ardorosos, que nao é meu caso, são implacáveis nesse ponto: deixam de perdoar se mudarem até a marca de cueca usada pelo herói.
Ora, esse trailer parece (atenção: parece), ao menos para esta pessoa, ter mostrado outra importante alteração: a origem do Uniforme Negro. Não vou especular muito, mas não vi nem sombra de guerras cósmicas, como era de se esperar (origem na HQ), nem sombra de viagem À Lua, como poderia ser esperado, visto que o filho do Jameson foi introduzido no última episódio da saga cinematográfica (origem no desenho animado). Só falta colocarem o Uniforme Negro como uma entidade representativa do sentimento de vingança do Peter, como um Oni de Shaman King.
Mas o filme promete, mesmo assim. Muitas perguntas dos fãs foram respondidas: realmente há o uniforme negro, Eddie Brock surge como fotógrafo chato (futuramente será Venom), o Homem Areia ganha uma importância MUITO maior do que a que tinha nos quadrinhos etc. O trailer me empolgou bastante. Tenho certeza de que os fãs mais ardorosos, segurando o coração por duas horas e meia, vão se divertir bastante também.
Segue o link para o trailer: http://www.cineclick.com.br/noticias/index.php?id_noticia=15203