28.7.06

O retorno - 8

Sem pretensões.
Não nasci mulher, não me tornei mulher. Deveria escolher ser mulher, que dia, que dia esse! Dia em que apenas as vejo com presentes e com mimos, vejo as bandeiras de vanguarda junto às conservadoras flores e penso, e sinto, e choro porque não são pra mim. Levantam-se causas, mas não para mim. Exigem igualdade, mas não é para mim.
Não nasci mulher, é verdade, mas e o acaso, o acaso ninguém vê? Por um acaso estou aqui, sim, porque nasci mulher, certamente que sim, apenas não vim ao mundo mulher em corpo. Estou incompleta, sinto que estou. Estou à margem, à margem me sinto mulher. Jogada, desprezada, ignorada, suplantada, estigmatizada e brutalizada: uma mulher sufocada porque deseja ser mulher. Uma mulher destruída antes de se tornar mulher. Alguém que deseja ser mulher, deseja ser parte disso e é reprimida, aliás reprimido, é deixado de lado, esquecido, e torna-se um pária sem querer. O que é isso, o que é o corpo, onde fica a alma, pode me dizer? Localize, apenas aponte, apenas anote, talvez com a sorte, talvez com tristeza eu a possa ver. Não vejo alma, não vejo corpo, vejo coração, coração de mulher. Sentimentos, tormentos, inseguranças, sou eu mulher. Talvez bem mais forte, talvez de voz grossa, com uma pica grosseira, mas me vejo mulher. Não são os meus olhos, não é minha cabeça, não estou maluca, estou insegura, estou tristonha, não me olhe assim. Não me veja com pena, não me veja com dor. Me veja como sou ou não me veja, me deseje como sou ou me esqueça. Não se esqueça de mim, por favor! Me liga, me telefona, deixa um recado, diz que me ama, vá-se embora, me esqueça daqui! Quem é a outra? Quem é a vaca? Não me mande calar a boca! Não me julgue! Não olhe a aparência, não, não se perca em detalhes! Veja além disso, veja o que sinto, veja como ajo e me diga com sinceridade: Posso eu ser homem? Posso eu ser homem por conta de um acaso?
Como podem me dizer pra ser homem, como podem me querer homem? Quero que me queiram mulher, que me façam mulher, que me deitem, me cubram, me amassem, me comam, me batam e digam “Vem cá sua vadia!”. Quero ser doce, quero massagem, quero carinho, palavras suaves, não esqueça um bom vinho, quero um mimo, quero atenção, mais gentileza, boa educação, uma lareira, algumas montanhas, um belo frio, ah!, o domingo! Quero ser santa, quero ser pecadora, quero ser Madalena e continuar pura, quero me sentir puta, quero satisfazer, quero meu escravo, quero trepar, não, preciso fazer amor, ser maravilhosa, não tenho pudor. Quero ter medo de doer, quero ter medo de amar, quero ter medo de sofrer, quero as sensações que nunca poderei ter! Quero me apaixonar.
Quero uma lembrança, assim, bem guardadinha! Uma lembrança querida, uma flor, um bilhete de cinema, um papel que joguei fora e encontrei tempos depois nas suas coisas, assim, bem guardadinho!
Não quero ser usada, não, não, hoje quero, hoje não quero, eu sou assim. Me entenda, me ajude, sai de perto e me ame. Vou gritar, vou brigar, vou sofrer e vou chorar. Vou ser forte e valente, vou superar e rir de você. Sou ciumenta, sou possessiva. Não me enrole! Sou chantagista, não me duvide! Sou venenosa, não me machuque! Sou pequenina, não me agrida... Sou frágil, não me culpe... Sou amável, mas tenho crises... Não te mereço, sou uma boba! Você não me merece, sou melhor do que você!
Eu sou frágil, não me iluda... Mesmo que eu peça, mesmo que eu implore...
Já nasci iludida. Presa a essa vida. Condenada sem culpa, só pela maior culpa de todas, só pela culpa de ser mulher. De querer ser mulher.
Sou alguém que nunca será.
Ah, que triste é iludir-se se o espelho aí está!
Um parabéns a todas as mulheres por este dia. E um parabéns a todas as mulheres que, por alguma razão, são impedidas de serem mulheres.
Originalmente publicado em www.porradaneles.zip.net, em 8/03/2006
Porque é muito triste ser condenado a ser socialmente o que jamais poderíamos ser.

O retorno - 7

Discurso vazio e outros negócios. Recentemente, abandonei a comunidade “Academês e discurso vazio”, no Orkut. Abandonei porque percebi que não correspondia às minhas expectativas. Quando me juntei a ela, achei que seria uma boa idéia. Achei engraçado essa coisa de brincar com o discurso vazio que é veiculado nos meios de comunicação de massa, esse discurso vazio de que se aproveitam (muitas vezes, mas não sempre) veículos como a Veja, Primeira Leitura, Mídia sem Máscara etc., de um lado, e Caros Amigos, Carta Capital etc., do outro lado. Porque, como um participante da comunidade de história do Orkut disse certa vez, “a burrice não tem ideologia”. Ta certo. A imbecilidade pode vir tanto da direita quanto da esquerda ou do centro. No mesmo sentido, a genialidade não tem ideologia. Há gente boa conservadora, há gente boa esquerdista. (Uma opinião pessoal: a imbecilidade da direita é muito mais engraçada que a da esquerda, por um simples motivo: a imbecilidade da direita, muitas vezes, apóia-se sobre um discurso cheio de palavras bonitas, construções gramaticais arrojadas, mesóclises, citações em francês, latim e grego arcaico, enquanto o discurso da esquerda é mais no sentido “cuba é bom pra caralho, seus filhos-da-puta!”. Como disse outro participante da comunidade de história do Orkut, o professor da Unicamp Leandro Karnal, “imbecilidade com citação em latim continua sendo imbecilidade. Olavo de Carvalho é papo de botequim com citação em latim”. Isso foi muito engraçado. Mas deixa pra lá.) Voltando ao início do texto: abandonei a comunidade sobre discurso vazio porque me decepcionei com ela. Minha intenção era brincar com o vazio dos discursos, mas não era nessa direção que os debates rumavam. A comunidade estava dominada por um grupo de “gênios” que se considerava detentor da verdade. Não estavam preocupados com o discurso vazio em si, estavam preocupados com qualquer discurso que contrariasse suas opiniões, suas ideologias, seus preconceitos. Qualquer discurso da direção política oposta era logo tachado de vazio, ignorante ou ridículo. O que é isso? O que é essa tomada de posição surda e burra? O que é esse dogmatismo que impede a percepção de coisas boas no discurso do outro? O que é essa intolerância que proíbe o aproveitamento, por menor que seja, de qualquer informação que o outro divulgue? Essa tomada de posição, dogmática, obscura, leva muita gente a criticar autores que nunca leram. Muita gente critica Marx ou Adam Smith sem ler. Muita gente só enxerga o comunismo se vinculado ao stalinismo, da mesma forma que muita gente só vê o capitalismo vinculado às ditaduras nele construídas. Muitos “liberais” são bastante rápidos em apontar o dedo e destruir o discurso marxista, dizendo que tal discurso só serviu para matar milhões de pessoas num stalinismo sanguinário; ou seja, dizem que o marxismo necessariamente leva a uma ditadura sanguinária. Ao mesmo tempo, esses “liberais” apontam as maravilhas do capitalismo, se perceber a deturpação dos valores liberais mais sagrados, como a meritocracia, num mundo sujo onde o “quem indica” supera o mérito. Vice-versa: quantos “socialistas” adoram apontar as atrocidades do capitalismo, a miséria, a desigualdade social etc., enquanto só faltam ficar de quatro pro Fidel Castro? Desde quando uma ditadura pode ser justificada? Desde quando um governo sem liberdade de expressão pode ser considerado um governo justo? O espaço é pequeno, meu conhecimento idem, minha paciência idem, idem. Não conseguiria discorres sobre esse assunto sem explicitar ao máximo minhas paixões, minhas falhas e meus preconceitos. Sei que minha opinião desperta coceiras em ambos os lados. Não me considero de centro, nem me considero dono da verdade. Eu acredito num mundo onde as pessoas têm que lutar pra viver, um mundo onde o mérito seja valorizado. Acredito, também, num mundo de igualdade. Não uma igualdade de resultados, onde os que trabalham sustentam os preguiçosos e todos acabam comendo, mas num mundo de igualdade de condições, ou seja, num mundo onde todos possam ter condições de mostrar seu valor, de lutar, de batalhar etc. Acredito em elementos de ambos os lados. Gosto de certas coisas que aparecem na Veja e em certas coisas que aparecem na Caros Amigos. Talvez possa me considerar esquerdista, uma vez que não me considero conservador (acredito na legalização do aborto até determinado mês, no casamento civil homossexual, na liberdade total para as mulheres etc.). Mas meu esquerdismo não me impede que deboche de outros esquerdistas. Meu esquerdismo não vai me levar a construir um altar e idolatrar Marx, nem vai me causar um sentimento de anti-americanismo. Acredito na tolerância, no respeito e na responsabilidade da liberdade. Acredito que nenhum discurso é absoluto e detentor da verdade, pois somos seres limitados, capazes de enxergar sob uma única perspectiva, ainda que uma perspectiva em constante mutação. Se nenhum discurso é capaz de englobar o total, não serei eu aquele que irá desprezar o discurso do outro em nome da pureza de meu próprio discurso. Se estou certo ou se estou errado, é questão de perspectiva. E qualquer perspectiva bitolada vai dizer que estou errado, mesmo tendo lido somente até a quinta linha.
originalmente... www.porradaneles.zip.net, em 5/03/2006
Porque "imbecilidade não tem ideologia". Essa é uma ótima frase.

O retorno - 6

Sucinta carta de amor de A. a sua amada M.
Texto extraído da dissertação
O Movimento Epistemológico de Tão Nobre Sentimento: Questões
Caríssima:
Tendo como medida teórico-metodológica o cuidado em traçar paralelos entre nossos sensíveis corações, procuro extrair do meu mais profundo e cognoscível ser tudo aquilo de agradável que a ti posso oferecer: o tão estimado, e já bastante discutido por vários autores, amor!
Partindo do pressuposto que o sentimento é recíproco, não me sinto embaraçado em fazer propostas escusas a ti, meu adorável Bourbon safra 1943. A ti devo tudo que sou, todas as poses e todo o arcabouço acadêmico que me sustenta em tão venerável posição. Toda vez que exerço o divino direito de não ter critérios, é em ti que penso. Todas as noites passadas em claro, piadas escabrosas a ruminar e decorar apropriadamente (huó-hó-hó), é ti, e somente ti, que tenho em mente.
A distância entre nós é evidente, eu sei! Sou um injustiçado algoz, sim, eu sei! Pareço séculos quando tenho décadas, sim, EU SEI! E me lamento por isso, ah, me lamento!
Eu pensei que fazia a coisa certa, minha cara! Juro que tentei fazer direito, apesar de talvez um tanto tarde demais. De que valem todos meus livros, diplomas, teses publicadas e vocabulário enrustido, se não tenho seu amor, seu corpo quente e belo junto ao meu torneado peito cabeludo? Ah, divina, quanta falta sinto de ti!
Não me vem, nesse sublime momento, nenhuma idéia para uma conclusão brilhante digna dessa carta, onde depositei tudo aquilo que me ficou acumulado por anos, gritando para sair! Nenhum idioma do mundo tem palavras suficientes para descrever esse momento (e olha que eu leio inglês, francês, espanhol, alemão...). Nada, nada em meu vocabulário pode se aproximar de mim nesse instante...
VENHA! VENHA INSPIRAÇÃO!
P... putaquepariu!
Oh, eu falei! Falei, sim, eu falei! Preciso lavar minha boca agora, adorada! Perdão, não posso vê-la hoje. Acabo por aqui. O Leviatã se descontrola, ó céus! Rosne, leão adormecido! Mostra que tu é macho, tchê! Brandeburgo, algum mês, algum ano há muito passado (quando a pipa do vovô subia ainda)
originalmente... www.porradaneles.zip.net, em 8/11/2005
Porque alguns pós-doutores ainda merecem uma dessas.

O retorno - 5

No início, tudo eram Trevas, Justiça e a Baía de Guanabara limpa. Até que um macaco sabido resolveu brincar com gravetos e descobriu o fogo, e o macaco viu que isso era bom. No segundo dia, queimou o rabo (e esse fato em nada altera o rumo dos acontecimentos a seguir). No terceiro dia, talvez por achar que o fogo era muito iluminado para certas práticas proibidas pela igreja, criou a noite e depois a neve, por gostar muito de sorvete de flocos. Aí o macaco viu que isso era bom.
No quarto dia, o macaco entediou-se e juntou um monte de barro à sua imagem e semelhança, e daí criou Deus. E Deus vivia pelado e feliz no Paraíso, quieto no seu canto. O macaco deu a Deus total liberdade: Ele poderia fazer tudo o que quisesse, tudo o que desejasse, o possível, o impossível e os trabalhos de Teoria da História num só dia (sem precisar consultar os trabalhos dos colegas - e isso NÃO foi um ato falho). O macaco permitiu a Deus ser onisciente, onipresente e tudo o mais. Mas Deus levou muito a sério esse "tudo o mais" e se meteu a ver seu nome em tudo: nas cruzadas, nas guerras, nas eleições presidenciais americanas e na Inquisição. Como Deus começava a se tornar um incômodo, pois tirava do macaco o crédito por todos os feitos, esse mesmo macaco resolveu criar um irmão para Deus - um irmão que também fosse alter-ego do macaco. Dessa forma, o macaco juntou barro, drogas, prostitutas e o Ozzy Osborne, bateu tudo à mão mesmo e criou o Inferninho. E deu o nome de Diabo ao irmão. E o macaco passeava sem rumo pelo Paraíso, e como precisava de justificativa para suas rugas, dor nas costas e rabugices, o macaco criou o Tempo. E o Tempo, meio-irmão de Deus e do Diabo, era metido a travesso. E foi o tempo que resolveu acabar com a banca dos meio-irmãos, por achá-los muito bobocas.
E por causa das travessuras do Tempo, Deus e o Diabo começaram a se desentender, e o macaco resolveu separá-los. E o macaco criou o Inferno, versão pós-moderna e medieval do Inferninho. E por deixar os publicitários, jornalistas e o canal 4 na Paraíso, o Inferno foi tão difamado, mas tão difamado, que não conseguiu apoio para se tornar colônia de férias do Fim dos Tempos. E com o Tempo, o próprio macaco ficou com medo do Inferno que ele próprio criara. E por ter a consciência pesada de tanto pecar e matar aulas, resolveu criar o Purgatório, "só pra garantir".
E afinal, no sétimo dia, como achou que o botox o deixara mais bonito e Deus ficara antigo e o Diabo muito feio e assustador, o macaco mexeu no barro de novo e criou sua nova filha, a Ciência. E o macaco resolveu que ela era mais parecida com ele do que Deus, ou mesmo que o Diabo. Foi nesse momento que o macaco matou Deus e negou a paternidade do Diabo.
Mas quando percebeu que tudo era culpa do Tempo, o macaco se arrependeu de matar Deus e agora busca seu corpo. E a Ciência, invejosa, finge que ajuda o macaco a procurar o cadáver enquanto o enterra cada vez mais fundo. E depois da Coca-Cola, Iron Maiden e Rei Leão, o macaco quer mais um neto bastardo e já começa a flertar com dona USA. E no oitavo dia, o macaco descansou.
originalmente, blábláblá, em 30/06/2005
Porque sim.

O retorno - 4

Definitivo Dicionário de Educação da Uniriesco (em construção):
Ai: (1)-gemido triste e doloroso. Todos olharam suas provas e disseram "ai".
(2)- gemido que exprime aplauso ou excitação. Carolzinha e Thalita olharam suas provas e disseram "ai!"
Arno: (esse tópico está suspenso até sair minha nota de Civilização II)
Boboca: diz-se da pessoa muito tola; babaca; pessoa que perde seu tempo na tentativa infrutífera de ir a um lugar inexistente, fantasioso, utópico . Ver indisponível.
C.A.: (1) Rede de estabelecimentos dedicada à venda de peças do vestuário, que tende a desaparecer.
(2) Período de pretensa alfabetização do aluno, pré-primeira série, que tende a desaparecer.
(3) Grupo representativo dos alunos de um curso de graduação, que tende a desaparecer.
Castela: docinho português que casou com Aragão, criando as touradas, o Real Madri e os faqueiros Tramontina.
Critério: Metódo pedagógico geralmente utilizado para se distinguir o certo do errado, desenvolvido para NÃO ser utilizado na correção dos trabalhos de Brasil I
Decania: Ofício público ocupado por eleição, cujos encargos consistem em reclamar, vigiar, se fazer de vítima e distribuir papel higiênico.
George: The page cannot be found. Please, try again later.
Indisponível: que não é disponível; que não está disponível. Fui ao Departamento 84 vezes e ele estava indisponível.
Queijo e os Vermes, O: destino mais improvável no planeta Terra para envio de textos dos alunos de História da Unirio.
Teoria da História: Ver Curso de Marxismo
Thiaguismo: Doutrina de cunho stalínico-enrolista, que consiste em batalhar ao máximo possível, em um curso de graduação, por melhores condições de oportunismo a fim de se atingir um posto de destaque no âmbito de uma faculdade. Ver nãoseiouvismo
Wallita: (1) professora que poderia dar Civilização II
(2) piada infame que pretendeu troçar do nome de certa marca de eletrodomésticos e, coincidentemente, de certo pós-doutor.
originalmente publicado em www.porradaneles.zip.net, em 9/06/2005
Só porque ficou engraçado.

O retorno - 3

(O cenário é uma simpática vila nas montanhas, com simpáticos moradores. Ao invés de casas em estilo neoclássico ou gótico, há rabiscos pelo chão simbolizando o contraste "espaço público/espaço privado" - ou seja, delimitando as casas. Ouvem-se tiros e uma moça entra correndo na cidade, encontrando um morador enrustido que se passa por intelectual de botequim. O rapaz esconde a moça numa mina que nunca produz nada e é dotada de iluminação natural. Um carro aparece com as janelas tapadas por cortinas. Pára ao lado do morador da vila. O motorista fala com ele:)
_Viu uma moça passar por aqui?
_Moça? Quer dizer, uma mulher?
_De preferência.
_Não, nunca vi não.
(Silêncio constrangedor. O homem no banco ao lado do motorista solta um suspiro angelical enquanto dá polimento à sua M16. O residente da cidade solta a pérola:)
_Foram os senhores que dispararam aqueles tiros?
_Caçávamos galinhas. E não pergunte mais nada.
(Ouvem-se batidas na parte de trás do carro.O motorista diz ao assustado morador:)
_O chefão quer falar com você. Vai.
(Ele vai. O vidro abaixa um pouco. A voz em off do Apocalipse diz:)
_Se vir a menina, ligue para mim.
(Entrega um cartão ao morador.)
_Posso lhe dar uma boa recompensa.
(O rapaz estremece com a oferta. Reluta um pouco mais aponta para a mina. O carona sai do carro, vai até o local e arrasta a mulher pela rua única da cidade, até de volta ao carro. O rapaz recebe um bom dinheiro. O carro vai embora. A cidade continua como sempre. Fim.)
Se fosse assim, pouparia-nos 3 horas. Se fosse assim, não haveria tantas teorias sobre a proposta do filme. Se fosse assim, umas 20 vidas teriam sido poupadas. Se fosse assim, não teríamos Dogville. Ainda bem que o Trier fez o roteiro, e não eu.
Originalmente publicada em www.porradaneles.zip.net, em 20/02/2005
Só porque gostei muito de Dogville.

O retorno - 2

Desde nosso nascimento, estamos cercados por possibilidades de escolhas e tomadas cruciais de decisão. O que não significa, exatamente, que somos seres agraciados com um variado leque de probabilidades para nossa vida. Ninguém nos perguntou se gostaríamos de ter nascido. Ou de não ter nascido. Simplesmente aconteceu. Papai e mamãe conheceram-se, gostaram-se, cortejaram-se e fabricaram-nos. E cá estamos nós, cuspidos ("cuspidos" é uma boa palavra), atirados, obrigados a este mundo. Mas também não temos exatamente plena vontade caso decidamos morrer. Nossa outra mãe, a natureza, imbutiu-nos um programa delicado e extremamente eficaz de perpetuação da espécie. Precisamos continuar vivos, é o que importa. O suicídios, decisão de alguns, só nos é possível caso o programa natural falhe, o que não ocorre em 100% dos casos, visto não tratar-se do Windows. Quando isto não acontece, continuamos obrigados a permanecer por aqui. E as rédeas de nossas vidas permanecem assim. Não escolhemos o idioma em que aprendemos a conversar, não escolhemos as primeiras palavras pronunciadas, não escolhemos os parentes que temos, não escolhemos sequer a marca mais confortável de fralda ou a mais prática mamadeira. Tudo nos é empurrado. Ou engolimos ou sofremos sanções, das palmadas aos castigos não-físicos. Atravessando a jovialidade da infância, o panorama não se altera. Não escolhemos o colégio em que damos os primeiros passos nas letras, não escolhemos nossos professores, não escolhemos os amigos (somente o são aqueles a quem nossa presença agrada). Ninguém quer saber se Mac Donalds é mais gostoso que espinafre, simplesmente nos enfiam goela abaixo aquela "comida de coelho"! Ah, a adolescência... Alguém perguntou a vocês se gostariam de ter espinhas no rosto? Ou deram a vocês a opção de namorar aquela gatinha ou aquele gatinho tão cobiçados? Ninguém quer saber se os shows, boates e festas são melhores que física, química e matemática; simplesmente obrigam-nos a enfrentar provas e mais provas para testar nosso apreço pelas matérias.
Começamos a trabalhar, quanta liberdade, não é mesmo? Ilusão: não escolhemos o emprego dos nossos sonhos (o que aqueles caras entendem de futebol? Eu, jogar mal!!??) nem o salário que ganhamos. Entramos no jogo do Sistema, e ele passa a controlar nossas vidas como nunca (pensando bem, algum dia estivemos fora do Sistema?). Ninguém perguntou-nos se gostamos de ser jovens. Se houvessem perguntado, não nos imporiam barriga nem cravariam suas garras em nossas faces tão suaves, agora enrugadas. Alguém quis saber de seus sonhos? Se você foi capaz de realiza-los ou não?
Não temos escolhas na vida. Todas as portas de nosso caminho rumo ao final do filme são impostas. Não podemos nem ficar parados! Somos empurrados sempre pela cruel barreira do tempo. Pensando bem, há, sim, algo a se escolher. Esse "algo" é o que fazer com o que nos é dado (ou empurrado, tanto faz). Na verdade, somente temos autonomia sobre nossos pensamentos e sobre nossa maneira de encarar os fatos da vida. Faço minha parte escrevendo este texto ridículo, cujo final poucos se dispuseram a alcançar. Tudo bem. Quem não o leu até o final, optou por essa escolha. A minha é continuar escrevendo, embora não haja muitos a me ler. Mas persisto em minha escolha. E assim sou feliz.
Originalmente publicado em www.porradaneles.zip.net, em 22/08/2004
Algumas opiniões mudaram, mas o básico continua o mesmo.

O retorno - 1

Cheguei à conclusão, após 30 anos de experiências não veadas de convivência com as pessoas, de que os mendigos não são humanos. Mendigos normais, desses sujos que aparecem volta e meia na rua, mão estendida querendo algum. Não são muitos os que concordam comigo, mas baseio-me em várias teorias para confirmar a minha. Estou absolutamente certo do que digo, sem mais. Proust gostava de dizer que o ser humano é um cérebro que sonha e leva o corpo pra passear. Portanto, um ser humano deve sonhar. E sonhar é lutar, é buscar o que se quer. Um mendigo sabe que nunca será capaz de realizar um sonho. É um inútil. Uma vida que nada vale. Não é capaz sequer de lutar. Wilde dizia que o ser humano podia resistir a tudo, menos às tentações. Onde estão as tentações do mendigo? Cachaça, alguns dirão. Isso não é tentação, é vício. Não conta. Tentação são mulheres loiras, claras e olhos azuis em programas de TV quase desnudas. Mendigo não vê TV. Tentação é Big Mac. Mendigo não come. Tentação é roleta, bacará, blackjack. Mendigo nem inglês entende! Então, não é humano. Twain dizia que o ser humano é um cachorro que morde quem o alimenta. O mendigo não se alimenta. Não tem sequer dente! Portanto, pode estender a mão sem medo da mordida. Segundo esses conceitos, podemos concluir que mendigos não são nem perto dos humanos. Por outro lado, senhores responsáveis como Malluf são humanos. E dos mais dignos. Ele sonha, sonha alto com a prefeitura de São Paulo. Ele tem milhões em contas no exterior. Dizem que roubou. Roubou não, caiu em tentação. Não resistiu. Segundo Wilde, é humano. Além de tudo, cansou de morder as mãos, os pés e os bolsos da população que o elegeu. E também mordeu a mão dos cabeças de seus partidos. Tendo tudo explicado, é fato: Um mendigo não é humano. Paulo Malluf, por outro lado, é. E da melhor espécie. publicado originalmente em www.porradaneles.zip.net, em 8/05/2004 Certas coisas nunca mudam. Às vezes, muda-se o nome sem mudar o texto. Outras vezes, nem isso.

De volta à ação. Ou não.

Agora em novo endereço e com as mesmas bobagens de sempre. Houve um pequeno probleminha ($) no Uol e eles não me deixaram mais usar aquele endereço. Tudo bem. Não gostava mesmo. Novo ano, novo blog. Agora vou tentar escrever com mais frequência. Ou, pelo menos, deixar de escrever tanta abobrinha. Mas primeiro vou postar textos do blog antigo. Não todos, apenas aqueles que mais gosto, ou aqueles que mereceram mais comentários, ou aqueles que me der na telha. De repente, quem sabe?, eu posto todos. Será que agora, em domínio de grátis, eu consigo mais comentários?