25.6.07

Confiança.

Esse texto abaixo é sobre o significado da palavra "confiança". Foi escrito há um tempinho, não sei quando. Talvez eu não concorde, hoje, com alguns pedaços. Mas mantive o original, modificando apenas algumas passagens para melhor entendimento. Uma vez que está fora de seu contexto original, muito mais amplo e cansativo de se ler, procurei resumir ao máximo alguns parágrafos. É isso.

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Confiança. É disso que se trata. A verdade é que jamais poderemos conhecer plenamente o que se passa ao nosso redor. O ser humano é decididamente limitado, sua perspectiva abarca poucos aspectos da realidade. E esta realidade, ainda por cima, é mediada por uma gama de convicções, preconceitos, idéias pré-concebidas, teorias, imaginações, especulações e outras prerrogativas humanas. Uma percepção que traz a realidade limitada e mediada, já chegando a nós completamente disforme. Esta distorção é que levou tantos a defenderem a bandeira do relativismo absoluto, a negar a existência da realidade, a colocar na perspectiva humana a própria existência fora do humano. Estão errados: há algo que é, algo que existe. As interpretações sobre esta existência, essas sim, todas no domínio humano, carregada desses problemas todos, é que, ao confundirem-se com a realidade, influem sobre nosso julgamento.

É uma realidade inatingível, a não ser por mecanismos que acabam por deformá-la. Como pode, então, o homem acreditar que sabe tanto? Como pode o homem transformar em regra geral, em universal, em científico aquilo que ele enxerga de um ponto tão particular frente à totalidade? A resposta é só uma: não pode. O homem apenas pensa que pode devido à carga de arrogância, petulância, megalomania e outras características que animam sua carcaça e dão energia à sua alma, uma energia de potência pronta a explodir.

O homem, ser limitado, crê poder dominar tudo ao seu redor. E esse é o problema. Não pode, simplesmente não pode. É impossível segurar com destreza todos os acontecimentos da vida. É impossível firmar as mãos nessas rédeas, agarrar essa roda da fortuna que gira com tamanha violência e tenta nos arrancar de sua presença a todo momento. O homem julga-se Príncipe maquiavélico e não passa de bobo da corte. Nem o próprio Príncipe seria capaz de tamanha façanha. Não há virtu bastante para nos dar plena ciência do que se passa ao nosso redor. E aí é que entra esse estranho artifício humano, essa estranha ferramente chamada confiança.

Confiamos estar certos. Confiamos ser capazes de realizações. Confiamos poder controlar o incontrolável, domar o selvagem, conquistar o maravilhoso. O indiferente nos ofende, porque confiamos ser os mais importantes que já passaram por essa Terra. E é por confiança que se erguem os alicerces de qualquer relacionamento. É nessa coisa fina, transparente, meio frágil, chamada confiança.

Confiamos que não seremos traídos. E, engraçado, o simples ato de confiar já abre a possibilidade de estarmos errados e de sermos traídos. Confiamos, mas não podemos ter certeza. Se temos certeza, se sabemos pra quem nossa namorada liga, por onde nosso namorado anda, com quem nossa esposa trabalha, de quem é aquele recado pro marido, então deixa de ser confiança. Se sabemos, ou pensamos saber, tudo que se passa na vida de nossos cônjugues; se só acreditamos no companheiro, na companheira, porque nos sentimos capazes de conhecer cada passo dado durante o dia, deixa de ser confiança.

Confiamos exatamente porque existe essa névoa que encobre parte do relacionamento. Confiamos que nessa névoa não existem monstros, não há abismos, há chão firme. Confiamos e entramos de cabeça na névoa, sabendo que não haverá o que nos machuque, ou imaginando saber que sairemos ilesos.

O ato de confiar traz a chance de se machucar. Confiamos, e confiar pode levar à dor da mesma forma que a vida, invariavelmente, leva à morte. Mas não deixamos de confiar, precisamos confiar, assim como precisamos continuar vivendo, mesmo sabendo que iremos morrer. E confiar é saber das limitações do companheiro. Confiar no amigo não é pensar que ele é capaz de fazer tudo, mas entender que há coisas que ele pode não conseguir fazer. Isso é confiança. O resto é uma cegueira apaixonada que não levará a lugar algum, senão ao arrependimento e ao mal falatório sobre os perigos de se confiar.

Confio nela, ela confia em mim. Confio neles, eles confiam em mim. Confio em minha ciência, em minhas ideologias, em minhas capacidades. Confio, redudantemente, em minhas crenças. Mesmo que haja esses pontos obscuros, essa parte escura que provavelmente jamais será iluminada.

23.6.07

Idéias fora do lugar da história.

Uma idéia corrente entre defensores do liberalismo econômico, percebo, é aquela que prega ter sido o capitalismo responsável por significativas melhorias na sociedade. Responsável pelos notáveis avanços tecnológicos, pela expansão da lei como referência a todo um conjunto de cidadãos, pelo desenvolvimento da democracia, pela diminuição da pobreza e aumento da expectativa de vida etc. A idéia é clara. Faz até algum sentido: nos últimos 150 anos a humanidade presenciou índices de crescimento jamais vistos em milênios. A extrema desigualdade do mundo, também jamais visto nos mesmos milênios, seria apenas um "desvio" do capitalismo, uma chaga naqueles pontos onde o liberalismo não encontrou espaço para atuar. Em outras palavras, a desigualdade seria um indício de falta de capitalismo. Não de seu excesso.
Não vou discutir as implicações que tal argumentação sugere. Sou muito desconfiado quanto a explicações que começam pelo sistema: "O capitalismo fez isso, o comunismo fez aquilo". Essa forma de construção diz muito pouco para mim. Além, é claro, do absurdo, a meu ver, que é catalogar sistemas como inerentemente bons ou maus.
O que me chama a atenção para essa argumentação (capitalismo responsável pela melhoria da humanidade) é a sensação de paz que ela traz consigo. Responsabilizar o capitalismo pela melhoria me soa como aceitar um imenso constrato entre humanidade e sistema, com a primeira entrando com trabalho e o segundo com direitos. Seria bem simples assim: trabalhadores do mundo, uni-vos e papai vai entregando seus direitos, o avanço científico, o mundo maravilhoso.
Para não me alongar nesse texto, vou me ater aos direitos. Os diversos povos pré-iluminismo, pré-racionalização do direito, viviam num delicado balanço onde cada grupo possuía seus códigos normativos próprios, que muitas vezes sobrepunham-se aos códigos legais de Estado ou da Igreja. Dessa forma, o direito da tradição, consuetudinário, possuía maior aplicação para os membros que dele partilhavam do que as ordenações "estatais".
O iluminismo, junto à consequente alteração na forma de abordagem da Justiça, alteraram esse quadro. Contudo, a progressiva universalização do direito não se deu da noite para o dia, nem foi fruto de um acordo entre as diversas camadas da população, cada vez mais identificadas com "classes sociais". O nascente direito ainda privilegiava certas classes em detrimento de outras, com a diferença de renda entrando no lugar da diferenciação estamental típica do Antigo Regime.
Esse panorama é simplista e tem muitos "erros". Contudo, meu propósito é chamar a atenção para o fato de que a expansão dos direitos não foi fruto do capitalismo, ou melhor, das idéias liberais que o acompanhavam. Entram aí os conflitos, os movimentos sociais. O que foram os cartistas na Inglaterra? Ou que relevância teve o movimento operário norte-americano, fortemente marcado pelo caráter "estrangeiro"? Ou as multidões francesas que tantos problemas causaram aos governantes da República?
A movimentação popular, por meio de conflitos, expandiu os direitos para parcelas maiores da população. Em outras palavras, a dita democracia capitalista, ou liberal, foi fruto de conflitos, lutas, pressões, tensões. Não foi uma expansão inerente ao sistema, mas fruto da ação dos agentes históricos humanos.
Pensar um sistema qualquer, seja capitalista, seja comunista, como inerentemente bom ou ruim, como naturalmente associado à democracia ou à ditadura, é, a meu ver, ignorar o papel que os sujeitos históricos possuem na condução de seus destinos, bem como no da humanidade.
Quando um autor começa seu texto dizendo que "O capitalismo distribuiu a imensas massas de classe média benefícios que antes eram privilégios da aristocracia." (cf. http://www.olavodecarvalho.org/semana/070621jb.html), a anti-historicidade de sua argumentação me leva a escrever esse texto. O absurdo se mostra muito maior à constatação que esse mesmo autor, na página inicial de seu site, coloca, em destaque: "Somente a consciência individual do agente dá testemunho dos atos sem testemunha, e não há ato mais desprovido de testemunha externa do que o ato de conhecer" (cf. http://www.olavodecarvalho.org/). Ou seja, parece-me contradição, caso despercebida, ou vigarice, caso intencional.
Pior! Nas informações sobre o autor, lê-se: "A tônica de sua obra é a defesa da interioridade humana contra a tirania da autoridade coletiva, sobretudo quando escorada numa ideologia 'científica'" (cf. http://www.olavodecarvalho.org/bio.htm). Uma pena que tal defesa não se extenda à defesa da participação humana nos processos de melhoria material da humanidade. Uma pena que a distribuição dos benefícios não seja resultado da luta humana, de indivíduos que se unem em prol de uma causa, mas sejam resultado da ação capitalista, de uns poucos que trouxaram civilização à humanidade.
Esses são absurdos apenas das duas primeiras linhas. Há outros mais. Mas saco tem limite.

22.6.07

Ele outra vez.

Falei sobre a passagem do tempo uns posts atrás. Falei obviedades, mas falei. Todo mundo fala sobre o tempo, todo mundo tem algo a dizer sobre o tempo. Mesmo que às vezes a fala não apareça evidente, todos estão sempre dizendo algo.
O que incomoda na passagem do tempo (dentre centenas de outros incômodos...) é a sensação de incompletude, a que me referi no dito post. Outro incômodo bastante irritante é a sensação de perda.
Perda pode ser entendida por múltiplos significado. Aqui, refiro-me à perda de si próprio. Perda de um ser que, à passagem do tempo, se dilui pra transformar-se em outro ser. O que não implica necessariamente em evolução.
Agora que já fiquei mais velho, e o momento-reflexão sobre o tempo se refere a esse evento, certos aspectos da minha vida ficam claros para mim.
Fui algo. Claro que fui. Mas agora, cada vez mais, cada dia a mais, não me enxergo nesse que fui. Sou outro a cada momento que passa. E não estou gostando disso.
Antes, meus sonhos serviam a um propósito. Não me preocupava exatamente com a realização deles, com a sensação de chegada ao pódio, de dever cumprido. Não. Mais do que isso, o que me importava era o caminho que percorreria até o sonho. Me interessava aprender nesse caminho. Experimentar. Tentar. Errar. Assumir os erros, aprender e consertar. Era isso que me realizava, a cada pequeno passo que eu dava em direção aos meus sonhos.
Eu dizia: "quero lançar um livro antes dos 20 anos!". Pois os 20 vieram e não me chateei. nem com os 21. Não havia lançado livros, mas havia aprendido muito nas tentativas. Errei horrores, e não me refiro só ao português. Mas foram erros valorosos.
Só agora percebo o quanto esse modo de viver e de encarar a vida me era importante. Agora que o perdi. Cada vez mais me percebo interessado nas realizações. Cada vez menos interessado no esforço, na vontade, nas tentativas do caminho.
A realização, por si própria, não deveria ser um ponto de chegada, mas um descanso na estrada rumo a um destino inatingível. Destino nem por isso, claro, pouco atraente. Pelo contrário. Sempre vi a sensação de destino inatingível como estimulante, como um meio de se aprender para sempre, sem ponto de chegada onde a corrida acabasse, sem teto onde batesse com a cabeça.
Preciso voltar a essa sensação. Claro. E isso só pode ser conseguido com a mesma passagem do tempo que me mudou. Ou melhor, o modo como encaro a passagem do tempo. Não como inimiga, mas como um infinito caminho que me convida a correr. Ou andar. A passagem do tempo, a sensação de tempo passado, nada disso pode ser um desestimulante, tampouco pode ser um "apressante". Não posso correr com meus sonhos só porque o tempo passa e, talvez, não os consiga realizar. Não posso correr porque perderia a paisagem da corrida, os buracos, os erros, as tentativas... Tudo isso que, até poucos anos atrás, era o que realmente importava pra mim nessa busca adoidada que é a vida.

19.6.07

O Partido, a Chapa, o Poder.

A construção de uma hegemonia de partido sobre as demais esferas da sociedade pode ser aplicável em qualquer universo, não importa o quão pequeno ele seja. Numa universidade, por exemplo, o caso que presenciei hoje foi sintomático.
A ocasião era um debate entre duas chapas para o DCE (Diretório Central dos Estudantes) da dita universidade. Beleza. Lá pelas tantas, me atira a pérola um sujeito da Chapa 2:
"Vocês (os alunos; dirigia-se o sujeito à platéia) querem participar das dicussões, debater, ou ser massa de manobra? Querem participar do movimento estudantil ou se deixar levar pelos outros?"
O sujeito não falou nessas palavras, é certo. Minha cabeça não é gravador. Mas o sentido foi esse.
Interessante o sentido dessas palavras. Constituem símbolo maravilhoso do quanto um sentimento ou opinião de grupo pode chegar a esmagar as opiniões de grupos contrários a ele.
A colocação do sujeito é dicotômica: ou você participa, ou é massa de manobra. Não há espaço para meio-termos; não há lugar para "terceiras-vias". O camarada é A ou B, lá ou cá. Não há intermediários entre o iluminado e o ignorante.
Ao colocar as coisas desse jeito, universalizando uma idéia que é apenas do grupo a que o dito sujeito pertence (ou, talvez, uma idéia que é própria e única apenas a ele mesmo); ao descrever o mundo em tão preto-e-branco, o sujeito nada mais faz do que delimitar os espaços onde supostamente pode haver contestação e onde supostamente são válidas as manifestações e a participação. Se um camarada resolve não discutir reforma universitária junto a outros colegas da universidade, imediatamente se torna massa de manobra, iludido, manipulável. Os mecanismos onde pode haver resistência são cuidadosamente definidos por um Partido (ou, no caso, uma Chapa de DCE) e os espaços fora desse limite são identificados com os inimigos. E inimigos, bem se sabe, ou se exclui ou se pune.
As propostas dessa Chapa começavam sempre por "diálogo com os alunos da universidade". Beleza. Muito lindo. Mas ao separar o universo em manipulados e iluminados, essa mesma chapa exclui outras formas de diálogo que não as dela própria. A conversa e a iluminação se dão nos moldes definidos pela chapa, o "falar" e o "ouvir" se dão enquanto espaços legítimos dentro dos limites da chapa. Em resumo, resistências que repudiem a discussão em assembléias estudantis (seja porque estejam desiludidas com o movimento estudantil, seja porque acham discussão uma perda de tempo) são desconsideradas enquanto resistências. São identificadas com a "massa de manobra", que inevitavelmente leva ao "conservadorismo", logo associado à "direita", por fim banido sob pretexto de "reacionário".
Acho odiosa a forma como organizações identificadas com o sentido do Partido agem. O Partido deveria ser integrador, crítico, promotor de discussões. Mas quando a organização define o encaminhamento do debate sem ouvir os críticos (quem precisa ouvir "massas de manobra"), ou os ouve, porém ignora, imeditamente se perde em muito o caráter democrático de deve ser a organização dita política. Infelizmente, estamos num espaço de luta por hegemonia. Não por melhorias.

17.6.07

Alhos e Bugalhos

Circula por aí, no meio de algumas cabeças esquisitas, a idéia de que socialismo e nazismo são irmãos, ideologias semelhantes, de mesma origem, práticas parecidas e até bigodinhos idênticos (vide Hitler e Stálin). Não vou entrar no mérito da discussão. Particularmente, não cheguei perto de ser convencido pelos argumentos limitados, geralmente restritos a questões de caráter econômico. Como se a organização da economia de uma sociedade fosse suficiente para definir o caráter de sua política... Ainda mais se tratamos de nazismo e socialismo, estruturas dotadas de uma forte ideologia. Deixa quieto.
O que me deixou curioso, nessa discussão, foi a forte necessidade dessas pessoas em definir o regime com base no "ser". "Tal regime é de esquerda, aquele é de direita, esse outro é de centro"... Essa forma de encarar a história, esquematizada, a meu ver, empobrece a análise.
Chegar à definição do "ser" depende do conceito montado para o "ser". O que torna algo algo? Ou melhor, quando as práticas políticas, impregnadas de ideologia, deixam de ser ações isoladas e constituem um bloco homogêneo o bastante para identificar-se com uma única diretriz, que parece, muitas vezes, pairar acima dessas mesmas ações e orientar toda e qualquer discussão que se faça sobre tal política?
Problemão, esse. Não consigo conceber um sistema que simplesmente seja. Não consigo conceber uma classificação que priorize o ser de um sistema em relação às práticas perpetradas pelos agentes desse mesmo sistema. Essa discussão ("nazismo é de esquerda?") empobrece a análise a partir do momento em que a preocupação se desloca para a classificação conceitual de um sistema, e não para a discussão do conceito utilizado.
Acho mais saudável conduzir a discussão de outro modo. Levando-se em consideração as práticas que aproximavam ambos os sistemas (nazismo e socialismo) e as que os afastavam. Levando-se em consideração as semelhanças entre outros sistemas (como nazismo e capitalismo) e as que também os separam. E, principalmente, levando em consideração que todo sistema real é fruto de experiências históricas que o definem de maneira única, enquanto processos em que os agentes têm papel relevante, num eterno conflito entre condicionantes e individualismo, ou entre continuidades e contingências, pra pegar emprestadas as palavras de John Gaddis.
Enfim, não gosto desse tipo de discussão, a não ser como material pra atualizar o blog, hehehe. Mas uma coisa é certa: os argumentos são por demais divertidos. Vale a pena uma conferida.
O mal e o bem são conceitos definidos pelo humano ou são categorias acima das desavenças mortais?
Particularmente, não vejo motivos para crer que existam forças definidas acima dos limites definidores do humano. Em outras palavras, o tangível, o cognoscível, enfim, tudo aquilo que pode ser apreendido pela capacidade humana está dentro do domínio do humano.
"O inconcebível que se pode conceber não é o inconcebível", disse Lao Tzé.
Aquilo que está fora do domínio humano é esse algo inconcebível, incognoscível, de jeito nenhum apreensível, não importa o quão grandiosas sejam as possibilidades humanas.
O mundo é traçado, delineado, estruturado de acordo com as necessidades humanas, as agruras do social e a historicidade das ações. É mutante, mutável, em constante transformação, e com ela vão as definições, os dogmas, as leis.
O domínio humano é constantemente recriado na realidade humana.
O incognoscível, não. Este é definido pelo não-ser, pelo não-existir, pela não-ação. A não-ação é que lhe dá forma, que lhe dá conteúdo, que lhe confere presença.
Presença, mas não cognoscidade.
O que é inconcebível não pode ser definido, nomeado, datado, historicizado. As categorias humanas devem se restringir ao domínio humano. O além-humano fica fora da concepção humana de existência, ou mesmo de não-existência.
E, mais incrível, essa totalidade à parte do mundo humano nos preenche, completa nossa existência pela noção de não-existência, confere sentido à nossa vida pela idéia de não-sentido. O ser, o falar, o agir, o simplesmente viver, tudo se define pelo seu complementar, que não pode ser apreendido.
O viver é navegar por entre esses espaços intangíveis. Um fluxo perpétuo de trajetos inalcançáveis. O viver humano, por curto, completa-se junto à noção de infinito. Ambos, existir e não-existir, existir curto e existir infinito, convivem no universo particular humano.

15.6.07

Nenhum futuro historiador deveria se surpreender com a passagem do tempo. Mas nenhum ser humano deveria ser indiferente a ela.
Não sei quando mais dói constatar que o tempo, diferentemente do que nos acostumamos a sentir, passa. Não tenho qualquer bagagem, e duvido que alguém tenha suficiente, pra sequer começar a falar sobre isso.
Talvez a dor seja especialmente cruel na passagem dos dez pros vinte. Daqui a 3 dias, completo 22 anos. E dói. Não por uma clássica imagem saudosa do que eu era, do que o mundo era, do que vivi, do que curti. Não dói pelo que fui, dói pelo que não me tornei.
As vivências deveriam levar o ser humano à melhoria material, espiritual, intelectual. Não levam. Quem dera fosse o mundo uma via de mão única rumo à perfeição, à consolidação de todas as potencialidades humanas. Quem dera fosse certa a presença de um ente superior guiando nossos passos rumo ao paraíso. Quem dera fosse certa apenas a garantia de acordar amanhã melhor do que hoje.
O que não me tornei está relacionado ao que eu esperava, há uns 4 ou 5 anos, que me tornaria 4 ou 5 anos depois. Essa teorização da vida sempre nos acompanha. Se por um lado nos serve de guia, nos orienta quando nos sentimos perdidos, indicando aquele lugar para onde sonhamos nos dirigir, por outro nos leva à inevitável frustração de dever incompleto.
Eu esperava chegar ao 22 anos com muitas coisas, sendo muitas coisas. Não tenho (não me refiro ao material) nem sou metade, e isso considerando apenas as escolhas que se mantiveram (por exemplo, há 4 anos eu nem esperava fazer história; há 3, queria ser um jornalista com cultura histórica; há 2, queria ser um misto de artista/cineasta/crítico/historiador; há 1 queria ser um professor-doutor. Isto pelo menos ainda se mantém.).
Pena que muitas pessoas (seria "muitas" um eufemismo?) jamais cheguem a ser aquilo que esperavam ser. E pena, também, que muitos cheguem onde não esperavam chegar. Pena que deva ser nessas condições: ou a ilusão ou a desesperança.
O que, podem perguntar, esperaria uma pessoa se tornar com apenas 22 anos? Acabei de reler e relembrar várias coisas. Reli poemas antigos que nem lembro quando escrevi. Reli comentários sobre coisas que escrevi, mas preferia não ter escrito. Relembrei pessoas que estavam à minha volta em cada passagem de tempo. Relembrei origens de várias maneiras de encarar o mundo, bases de minha formação que jaziam esquecidas.
Desnecessário falar sobre o que me levou a essa nostalgia e a esse texto. Só queria deixar registrada num espaço virtual algumas palavras que não vou revisar. Despreocupado com questões acadêmicas, com preocupações profissionais, com pendências pessoais, ficam palavras que recordam momentos anteriores a tal situação. Crescer é parte disso. Crescer traz consigo outras dimensões. Dimensões que não desejo recusar, apenas gostaria de encará-las, vivê-las, aprender com elas, sempre sem me esquecer de onde vim, de onde aprendi, em que acreditei. Os últimos 4 anos passaram muito depressa. Daqui a um ano nem imagino onde estarei. Decerto não onde espero, hoje, estar. Decerto não onde esperava, no passado, estar.
Se a melancolia parece inevitável, se o que passou já é passado e o que não me tornei não pode me assombrar, espero apenas deixar levar sem mágoas, sem frustrações. Há um momento por aqui perto, não gostaria de perdê-lo.

3.6.07

Lições de vida.

Até agora evitei tocar na "questão USP". Evitei por várias razões. Um: gostaria de escrever algo quando a reitoria fosse desocupada, mas parece mais fácil tirar encosto do que aqueles alunos. Dois: gostaria de pesar melhor os fatos, uma vez que as fontes, por mais diversas, não apresentam um panorama confiável da invasão. Em outras palavras, quem é de direita está contra e critica de todo jeito, quem é de esquerda está a favor e elogia de todo jeito, no meio os de sempre que falam pelos cotovelos. Três: esse assunto muito me enraiveceu, por ser estudante, por me considerar de esquerda e por estar desiludido com o movimento estudantil.
Várias razões me levavam a não escrever, bastou uma pra me fazer agir. Ou melhor, uma razão que se divide em várias: os técnicos administrativos da UFRJ já estão em greve - ouço boatos fortíssimos de que os professores e alunos não tardarão a embarcar - , a UFF, segundo ouço, não voltará pro segundo semestre (ao menos a maioria dos cursos), a Unirio, também, quase certamente entrará em greve. Ouço histórias que a UNE propõe uma greve geral na educação. A Biblioteca Nacional do RJ está em greve. O Arquivo Nacional faz suas paralizações. Mais que o ciclo anual costumeiro, o caso me parece mais sério. E, por tudo remeter à invasão da reitoria, como que medida estimulante, ainda que a natureza das faculdades seja distinta (em SP, estaduais; as do RJ, federais), resolvi escrever alguma coisa.
O movimento estudantil, como a maior parte dos movimentos sociais, possui um caráter histórico de instrumento de luta por melhores condições. Instrumentos como esses surgiram à medida que o capitalismo firmava-se no mundo ocidental, juntamente com os instrumentos liberais e o estado de direito. Foi no espaço democrático que surgiram essas lutas, nos séculos XIX e XX; um espaço conquistado à falta de possibilidades legais de acesso ao poder. Os movimentos sociais, fortemente influenciados pelos pensamentos de raízes socialista e anarquista, nasceram fracos e fortaleceram-se por seus ideias, seus objetivos, suas vitórias em prol de "maiorias minorizadas" que, até então, não reuníam força suficiente para levar a cabo projetos próprios, indispensáveis ao pleno exercício democrático. Com o passar dos anos, a democracia e o liberalismo, nascidos como cerceadores da participação popular, abriram-se e universalizaram-se enquanto conceitos, abarcando os grupos que antes lutavam pela sua derrubada e esvaziando seu discurso de revolução.
Nesse movimento de esvaziamento os grupos sociais, outrora ligados aos seus apoios de base, descolaram-se e passaram a orbitar os grupos políticos, numa atitude fisiológica. Vazios de conteúdo programático, passaram a gritar, espernear, chorar e aproveitar as benesses que sua posição lhes conferia.
O movimento estudantil passou por esse esvaziamento que atingiu os movimentos sociais. Independentemente de lutarem pelo socialismo ou pela democracia liberal, os estudantes tinham um ideal constituído, perdiam-se em leituras, discussões, sonhos de mudança. Levassem esses caminhos ao estado de direito constituinte ou a uma ditadura do proletariado, as propostas não haviam ainda descolado-se de uma forte base de apoio.
Hoje, vejo pedidos cada vez mais fisiológicos. A greve, instrumento legítimo de luta, torna-se banalizada pela frequência e pela falta de um projeto que unifique os corpos de funcionários. Muitos estudantes que se organizam em passeatas ou não estudam (o que lhes tira o caráter de "estudantes") ou se profissionalizam em estudar (o que lhes tira o caráter de "estudantes"). O envolvimento dos partidos passa de apoio logístico a implementação de programas. Perde-se no discurso o verdadeiro objetivo. As bandeiras de partidos pequeninos (geralmente PSTU, PCB, PC do B, os de sempre) são grandes o bastante para impedir a visão das bandeiras estudantis.
Essa organização, a meu ver desvirtuada, do movimento estudantil esbarra numa universidade que clama por reformas. E a hipocrisia, o desleixo, o discurso vazio dos estudantes, além de incapazes de salvar o templo-mor do saber, ajudam a afunda-lo ainda mais. Talvez eu volte a essa questão outro dia, ainda mais porque os encostos grudam cada vez mais lá por SP (e ameaçam se multiplicar).