20.10.07

Outra coisa sobre Tropa de Elite

Eu disse que ia falar de tortura. E, por uma conjugação de trabalhos, preguiça e pane no pc, só agora vou cumprir a promessa.
Começa com a Veja da semana passada, em matéria especial sobre o filme. Lê-se numa das reportagens, versando sobre a expulsão dos policiais de má-conduta do Bope:
"Nos últimos quatro anos, pelo menos 43 policiais foram afastados, seja por baixa qualidade técnica, seja por desvios de conduta. Entre as supostas irregularidades havia suspeita de ligação com o jogo do bicho e de desvio de material da polícia. Quanto à conduta informal de asfixiar bandidos com sacos plásticos, como método de arrancar confissões, ninguém foi afastado do Bope por empregá-la."
O grifo é meu. E por que o grifo? Um desatento diria: "ah, você quer ressaltar a falta de punição que há para práticas 'informais' desse tipo! Acertei?" Não. Errou feio. Nada disso. Quero ressaltar outra coisinha.
Repare: a reportagem diz que o famigerado saco é "método de arrancar confissões". Até aí, beleza. Mas quem confessa? Ora, quem tem rabo preso. A informação vem antes: "conduta informal de asfixiar bandidos". Asfixiar bandidos. Logo, o saco é um método, questionável ao extremo, mas eficaz, de arrancar confissões de bandidos.
Um direitopata (oposto do "esquerdopata" a que alguns se referem) diria que endosso a bandidagem. Nada disso. Endosso a síndrome de Jack Bauer.
Quem não viu 24 deve ter ouvido falar do agente americano que usa também métodos questionáveis, mas eficazes, para obter as confissões. É isso que vemos nos EUA, é isso que vemos no Tropa de Elite.
O problema é: nesses filmes, 98% dos casos de tortura são cometidos sobre bandidos. Ou seja, a tortura é exatamente o que o autor do artigo da Veja definiu: uma atitude eficaz, mas questionável, para obter "confissões". Mas e quando o método é aplicado não em bandidos, mas em inocentes?
Vejam bem: questiono totalmente o método e o repudio. Não acho que a tortura deva ser aplicada sequer em animais irracionais, que dirá em humanos. O que desejo ressaltar é o seguinte: esses métodos de tortura, quando passam no Tropa de Elite e quase sempre em 24 horas, são aplicados somente a bandidos, o que contribui para endossar, frente à população, a eficácia do método.
Aí, e só aí, ele se torna questionável, porém eficaz.
Todos os torturados em Tropa de Elite eram bandidos ou cúmplices. Mas nem todos eram bandidos declarados, ou seja, de rosto conhecido. E se a tortura fosse aplicada num morador comum? Como seria a reação?
Ora, a realidade bem difere da ficção. Alguém duvida que existem incontáveis vítimas desse "método informal" de obter confissões? E por que a matéria da Veja não levantou essa questão? Por que não colocou a possibilidade de que o "método informal" pode significar a destruição completa da vida de um inocente, e não haverá quem puna o culpado? Afinal, os praticantes do tal "método informal", à diferença dos corruptos, não são punidos.
Não se trata de trocar um pelo outro. Essa escolha não pode existir. Entre o violento e o corrupto, fico com nenhum dos dois. Não é uma opção válida. É absurdo!
Vivemos numa situação que o cumprimento da lei se dá não pela própria lei, mas baseado, em muitos casos, no julgamento individual do policial (vide texto abaixo). É ele que decide quem prender e quem soltar (o capitão nascimento manda soltar um cúmplice dos traficantes, depois de obter, pelo "método informal", a localização do mesmo). É ele quem escolhe a atitude a tomar para solucionar um crime. E é ele quem dá a medida a ser tomada na punição.
Essa é uma mensagem presente no filme Tropa de Elite. E não vejo ninguém falando sobre ela. Uma pena que outras mensagens tenham ofuscado essas, tão importantes quanto.

7.10.07

Uma coisa sobre "Tropa de Elite"

A polêmica começou muito antes do lançamento e não tem data pra parar. Tropa de Elite deve ser um dos filmes mais comentados da história do cinema brasileiro. E não por revisitar um dos dois temas clássicos de nossa filmografia - a violência (o outro seria o Nordeste) - , nem por mostrar esse tema pela ótica do "outro lado" - o dos policiais. Não são essas duas razões que mais influenciam toda essa polêmica. O principal é não se preocupar em definir mocinhos ou vilões; ao invés disso, define o "fora da lei" e o que "aplica a lei".
Todos no filme têm seus podres. Mesmo os que começam limpos vão, pouco a pouco, se poluindo. De um lado, bandidos com sentimentos (incluindo universitários drogados, "de consciência social", cúmplices dos traficantes), que se preocupam com o social e todo aquele discurso do assassino revolucionário presente em livros como "Abusado". De outro lado, policiais com a missão de garantir a paz sem medir a violência, infringindo todos os direitos humanos para cumprir seu objetivo. Esses são os dois grandes lados, por onde transitam várias outras dimensões.
O filme oferece um rico material para discussão. Escolho dois pontos apenas. O primeiro trato agora, o segundo talvez mais tarde, ou outro dia. O tema de agora é a frouxidão da lei, ou melhor, de seu cumprimento.
Sobre esse ponto nada li ainda. Os discursos muito se preocupam com os dois lados acima destacados. As resenhas apenas se detém no cerne da polêmica, entre os policiais e os bandidos. Mas essa questão da "frouxidão" é fundamental.
Vou considerar que quem me lê já viu o filme. Mathias, é certo, como policial que era, não deveria ter aprofundado suas relações com os estudantes cúmplices dos traficantes. Isso o próprio filme deixa claro, pela narração do Capitão Nascimento. O que não fica tão claro é a atitude de Mathias pouco antes da morte de Neto, quando, segundo as palavras do narrador-personagem, Mathias resolve enfrentar os estudantes.
Mathias ordena ao estudante-maconheiro (esqueci o nome do infeliz) que marque um encontro entre o policial e o garoto, a quem entregaria os óculos que prometera. Tal ordem leva a uma série de fatores que resultarão na morte de Neto.
Ora, a culpa pela morte deste recai sobre o maconheiro, que denunciou ao traficante-chefe a ida do policial à favela. Mas, ao meu ver, uma parcela da culpa é desviada, pois Mathias foi diretamente responsável ao não cumprir sua obrigação.
Que deveria ter feito Mathias? Ora, ter prendido o maconheiro, que era também traficante. O próprio Mathia sabia estar tratando com um criminoso. A certa altura diz: "se não fizer isso que te mando, vou te prender". Ora bolas, a lei não deve ser utilizada ao bel-prazer do policial. O policial não é uma entidade acima da lei, é aquele que deveria ser o primeiro a cumprí-la. Ao não cumprir a lei e deixar o marginal solto, Mathias causou a morte de seu amigo de infância.
A lei deve ser cumprida sem distinção. Mas não é desse modo que agiu Mathias, e não me refiro à violência praticada o tempo todo (disso tratarei depois). Mathias não cumpriu sua obrigação de prender o traficante-estudante por qualquer razão que não justifica sua atitude.
Mathias é o filme todo retratado como um policial honesto. Mas agiu desonestamente, agiu como se estivesse acima da lei, como se tivesse poder para, contrariando a lei, julgar quem vai preso e quem permanece solto.
E aí cabem algumas questões: não fosse o traficante estudante rico, teria Mathias o prendido? Não fosse conhecido de Mathias, teria sido preso? Se Mathias não precisasse de sua ajuda para entregar os óculos, teria deixado solto?
Como se vê, uma prática que, infelizmente, não tenho porque duvidar que ocorra no dia-a-dia, uma prática de "frouxidão da lei", acaba atacando a democracia. O poder de decisão sobre liberdade e prisão concentra-se no policial, que age como bem entende e não de acordo com a lei, como deveria agir. A prerrogativa da liberdade passa a ser não o cumprimento da lei, mas a rede de relações tecidas entre o criminoso e o policial que deveria prendê-lo.
O outro ponto do filme que me chamou a atenção, e que foi tratado de maneira meio rasa entre as resenhas que li, é a tortura como meio de obter informações. Mas disso trato outra hora.