7.3.07

À Procura da Felicidade

Fui ver o filme "À procura da felicidade", com Will Smith. De cara já adianto que é excelente. Maravilhoso. Tocante. Tem uma mensagem profunda que exalta a capacidade de um homem obstinado tomar as rédeas de sua própria vida, levar adiante seus próprios sonhos, superar as dificuldades e, ainda, criar e educar sozinho seu único filho.
O filme é também um prato cheio para liberais e um golpe nos estatiofílicos. Prato cheio porque Chris Gardner, personagem real interpretado por Will Smith, é um self made man à antiga. Saiu do nada e chegou no tudo. Sozinho. Dirão os liberais: o governo, quando aparece no filme, é pra cobrar impostos atrasados e dizimar a já abalada poupança de Gardner, acumulada com muito suor. Chris trabalha pra si próprio - investiu suas economias em máquinas de scanner para médicos que revelam-se verdadeiros elefantes brancos - , mas sua persistência o leva a vendê-las por completo. É quando surge a mordida do leão...
O filme é um golpe nos anti-liberais porque Chris limpa, também sozinho, a sujeira que insistem em lhe colocar sobre os ombros. Passa por mil apertos, mas não deixa de lado seu sonho de melhorar de vida. Mesmo quando tem que dormir no banheiro do metrô junto com o filho ou nos albergues municipais repletos de mendigos. Mesmo quando mal tem dinheiro pra se alimentar ou é preso devido a multas de trânsito. Estuda pesadamente na tentativa de um estágio, não remunerado, que lhe possibilitaria uma melhora de vida. Possibilitaria porque... Bem, vá ver o filme.
Mas o filme pode pregar uma peça nos liberais, como parece ter prego em Rodrigo Constantino. Em texto no seu blog (http://rodrigoconstantino.blogspot.com/2007/02/procura-da-felicidade.html), Constantino diz: "Fora isso, o filme desmonta a crença do Estado paternalista, que irá cuidar dos pobres. Pelo contrário, o governo aparece para tirar na marra e sem aviso o dinheiro que Gardner conseguiu juntar com a venda de scanners para médicos, alegando impostos atrasados. (...) Esse é um retrato da realidade. O governo, para dar algo, antes precisa tirar, e normalmente o fardo recai sobre os mais pobres.".
puro liberal talvez desse razão a Rodrigo Costantino. Como eu disse anteriormente, o governo apareceria como confiscador de poupanças. Mas, considerando novamente tratar-se de uma peça pregada, e não de falácia assumida, sou obrigado a discordar de Constantino. Gardner, quando na miséria, refugiou-se em abrigos municipais, como eu disse. Abrigos públicos. DO GOVERNO.
Ora, é este o governo que defendo aqui. Um governo que taxe os mais ricos (não os ferrados, como Gardner) e utilize esse dinheiro para construir mecanismos pelos quais os indivíduos podem, sozinhos, buscar sua felicidade. O governo não deve impor felicidade aos outros, pois desse modo tratará os cidadãos sempre como ovelhas. O governo tampouco deve inexistir, ou existir minimamente. O governo deve ser simplesmente um neutro meio de se alcançar a felicidade. O governo deve existir como nos abrigos que Chris Gardner aproveitou, e sem os quais não conseguiria ir mais longe com seu filho.
Em suma, os homens vivem sozinhos, mas não sobrevivem sozinhos. Apenas um tipo de pessoa poderia ignorar os abrigos municipais: aquele que não sabe o que é passar fome.

A solução de Kafka

Kafka percebeu como ninguém a grande questão da condição humana: as pessoas só te amam enquanto você não é um asqueroso inseto de dois metros de comprimento. Fácil e simples assim. Quando a metamorfose se completa, o amor cede lugar ao nojo, à repugnância, ao ódio.
Esta não é uma observação leviana. Todos nos tornamos insetos asquerosos com o passar dos anos. Deixamos de lado o cuidadoso cálculo com o qual organizamos nossa vida nos primeiros anos e, a partir de então, levamos nossas vidas quase em modo automático. Deixamos de construir relações para mantê-las apenas por inércia. Deixamos de inovar relacionamentos para deixá-los sucumbir à monotonia. Abrimos mão de reiniciar, ou iniciar, projetos apenas por preguiça, por desânimo. O ser humano nasce homem e morre barata!
O que Kafka deixa nas entrelinhas, ou talvez não tão nas entrelinhas assim, é que o problema pela nossa decadência está em nós mesmos. Ora, essa também não é uma afirmação leviana. Na obra de Kafka, à primeira vista, os responsáveis pelo martírio do personagem principal sempre são agentes externos: a transformação inexplicável de Gregor Samsa em inseto, os agentes da burocracia que levam o pobre K. à batalha judicial, o poderoso castelo que se ergue e domina a vida daqueles sob suas garras etc. À primeira vista, a culpa é colocada sobre esses agentes externos, meio que como um meio de livrar o personagem do inconveniente auto-flagelo, típico de sua raça.
Como eu disse, essa é uma impressão à primeira vista. Aqui está, ao meu ver, o gênio de Kafka e sua grande ironia, seu magnífico deboche. A culpa não é dos agentes externos, a culpa é, na maior parte, do próprio personagem. Culpa porque é um ser fraco, incapaz de reconhecer a própria mediocridade, incapaz de lutar ou de perceber o absurdo de sua própria situação. Encontra-se constantemente encurralado e resolve jogar as regras dos seus adversários, ao invés de virar o tabuleiro e perceber o inusitado de sua posição. Responde às perguntas ao invés de gritar "mas que porra é essa? Não vou aceitar merda de pergunta nenhuma". Em suma, domestica-se para evitar o embate direto contra aqueles que desencadeiam, porém sob conivência da própria vítima, seu martírio.
Kafka percebeu o fantasticamente óbvio. Hoje leio n´O Globo que pessoas isentas do imposto de renda em 1996 pagam hoje, em parte, até a maior alíquota de 27,5%. Trata-se de apropriação que o governo faz dos ganhos de pessoas comuns, não milionários. Pessoas de classe média com ganhos em torno de 2800 reais.
Agimos na solução de Kafka: jogamos o jogo ao invés de perceber o absurdo da situação. Cômico. Trágico. Fosse Kafka o governo, brincaríamos de barata.